* Artigo original de Paulo Pinheiro, que pode ser lido aqui
As obras hidráulicas transversais produzem alterações significativas nos ecossistemas, sendo a actividade migratória da ictiofauna particularmente afectada. O restabelecimento da sua mobilidade pode ser conseguido através de passagens para peixes.
As necessidades das sociedades humanas face ao crescimento demográfico, em conjugação com o desenvolvimento tecnológico, têm provocado a intervenção sistemática do Homem nos ecossistemas de forma a melhorar o nível de vida das populações. De facto, têm sido construídas inúmeras obras transversais nos sistemas fluviais, sobretudo açudes, barragens e pequenos aproveitamentos hidroeléctricos – vulgarmente denominados em Portugal de mini-hídricas –, com o intuito de suprir as necessidades em água para abastecimento humano, para as actividades agrícolas, mas principalmente para produção de energia eléctrica. Outras aplicações surgem com as necessidades de regularização do escoamento (limitação do efeito de cheias) ou de protecção e conservação de margens e/ou leitos dos cursos de água.
O consequente decréscimo dos efectivos populacionais, ou a extinção local de espécies migradoras como o salmão (Salmo salar), conduziu à construção e desenvolvimento de diversos sistemas de transposição piscícola em obras fluviais, genericamente designados de passagens para peixes (PPP). Estas estruturas pretendem minimizar as consequências do efeito barreira na ictiofauna, permitindo, em menor escala, o restabelecimento do contínuo lótico nos sistemas fluviais. Apesar de uma percentagem significativa destes dispositivos serem preferencialmente direccionadas para espécies diádromas (e.g., salmonídeos e clupeídeos), vários taxa holobióticos (incluindo os ciprinídeos ibéricos) também as podem utilizar no decurso das migrações potamódromas associadas à actividade reprodutiva ou alimentar. As PPP são também usadas por alguns mamíferos, como foi demonstrado em Portugal com a toupeira de água (Galemys pyrenaicus) e a lontra (Lutra lutra).
IMPACTES ASSOCIADOS À EDIFICAÇÃO DE BARREIRAS FÍSICAS
Em termos ecológicos, encontram-se pouco estudadas as consequências da implantação de barreiras físicas no contínuo unidireccional do transporte de materiais e seres vivos. A construção de aproveitamentos hidroeléctricos, ao promover a edificação de um obstáculo transversal ao curso de água, com a subsequente divisão do habitat em dois compartimentos, altera inevitavelmente as características ecológicas da secção da bacia hidrográfica onde a obra hidráulica se insere. Na literatura da especialidade têm sido frequentemente tomados como certos os efeitos ecológicos das barreiras, sobretudo a imposição de um obstáculo físico – efeito barreira –, mas também a alteração de habitats, a diminuição do caudal original, a criação de um regime de escoamento irregular, a alteração da qualidade da água e a maior susceptibilidade das comunidades ictiológicas a fenómenos de predação e à acção de agentes patogénicos.
Efeito barreira à actividade migratóriaA edificação de obras hidráulicas limita os movimentos das espécies migradoras e/ou residentes para montante ou jusante, reduzindo a acessibilidade dos
taxa piscícolas a locais fundamentais para completarem o seu ciclo de vida. Esta situação pode provocar o isolamento populacional, compartimentando diferentes classes de idade a montante e jusante (que com a decorrer das gerações poderá conduzir ao isolamento genético), causar desequilíbrios na taxa de recrutamento e na estrutura etária, e ainda ser responsável pelo desaparecimento de certas espécies a montante, sobretudo diádromas. O efeito dos obstáculo face às rotas migratórias depende da altura imposta, da capacidade locomotora das espécies migratórias e das condições hidrodinâmicas sobre e imediatamente a jusante do obstáculo, especialmente a velocidade da corrente, a altura da lâmina da água, a configuração dos jactos e a profundidade e turbulência da massa de água.
Alteração de habitatComo o fluxo unidireccional da água é interrompido formam-se zonas de características lênticas, reduzindo significativamente a heterogeneidade ao nível dos habitats, alterando igualmente a composição das comunidades piscícolas. Habitualmente, considera-se que os taxa reófilos são substituídos por espécies generalistas, melhor adaptadas a ecossistemas lênticos; para além da eventual introdução ou progressão de taxa exóticos. A formação do regolfo poderá também induzir o alagamento de algumas áreas vitais para a ictiofauna, como locais de desova ou zonas de crescimento para juvenis. Em função das flutuações no nível da água verificadas a montante da barreira podem existir variações morfológicas e estruturais das margens, com alterações na constituição da vegetação ripária e aquática. A jusante do obstáculo, pode ocorrer a invasão do leito pela mata ripícola, com modificações nas comunidades bentónicas e de macrófitos.
Alteração no regime de escoamentoO regime de escoamento apresenta um papel relevante ao nível dos sistemas lóticos, com efeitos indirectos nas comunidades dulçaquícolas, particularmente por ser um dos principais estímulos para o processo migratório reprodutivo, uma vez que os peixes se orientam pela direcção da corrente, movimentando-se contra esta. Em cursos de água submetidos a regulação por obras hidráulicas o regime natural é modificado, podendo existir alterações bruscas de caudais, as variações sazonais podem desaparecer, o período estival sem caudal pode ser prolongado e os picos de cheia eliminados (ou ocorrem mais tarde do que o esperado, apresentando magnitudes inferiores). Em situações extremas, sobretudo no troço entre a captação e a restituição dos aproveitamentos hidroeléctricos, a alteração de caudais poderá ser drástica, permanecendo esta secção sem água. A modificação do regime de escoamentos influencia igualmente a produção de alimento e a existência de condições para a sobrevivência de ovos e alevins, devido ao seu arrastamento para jusante.
Alteração da qualidade e dos parâmetros físico-químicos da água
A construção de obras hidráulicas induz alterações significativas na qualidade e nos parâmetros físico-químicos da massa de água. Tal facto resulta do seu represamento e de eventuais descargas da albufeira (aquando de limpezas ou obras de manutenção). A retenção de água modifica as condições de transporte sólido preexistente, provocando a sedimentação de material sólido a montante do paredão – assoreamento da albufeira. A nível da temperatura, é provável que sofra alterações na secção fluvial (para montante e jusante) influenciada pela imposição do obstáculo, sendo que a natureza e amplitude destas variações dependem das condições climáticas, das características dos sistemas fluviais e do tipo de obra.
Risco de predação e doençasA acumulação de uma grande densidade de indivíduos em migração, essencialmente a jusante do obstáculo, constitui um alvo fácil para predadores piscícolas e mesmo para algumas aves ou mamíferos. Este facto deriva do desgaste físico a que os peixes são submetidos, devido às inúmeras tentativas de transposição das barreiras; ou mesmo na passagem sobre o paredão e através das turbinas, que os deixa um pouco “desorientados”. O conjunto de comportamentos assinalados pode ser também responsável por um acréscimo na susceptibilidade à ocorrência de doenças.
PASSAGENS PARA PEIXES (PPP)A construção de PPP é a principal medida mitigadora do efeito barreira na ictiofauna, restabelecendo a conectividade longitudinal dos sistemas fluviais. O fundamento da sua construção remonta à época em que o Homem observou a dificuldade de alguns peixes se locomoverem face a obstáculos geológicos naturais, resolvendo facilitar a sua mobilidade através da edificação de PPP. A primeira infra-estrutura com esta função foi colocada na Suíça em 1640, num obstáculo natural. Por outro lado, o primeiro dispositivo de transposição piscícola edificado numa barreira de origem antrópica remonta a 1828, na Escócia. Em termos genéricos, uma PPP pode ser definida como um caminho artificial, alternativo ao curso de água onde foi edificada uma barreira, que para a ictiofauna dulçaquícola se apresenta intransponível ou dificilmente superável. O princípio geral de funcionamento consiste em atrair os peixes migradores a um ponto do sistema fluvial, a jusante do obstáculo, e incitá-los a deslocarem-se para montante através de uma estrutura onde flua água – PPP em sentido restrito (bacias sucessivas ou deflectores) –, ou capturá-los numa cuba, que após elevação mecânica os liberte a montante – ascensores e eclusas.
No dimensionamento das PPP devem ser consideradas as condições hidrodinâmicas – sobretudo a velocidade da água e o regime de escoamento – à entrada e no interior do dispositivo, para além de conhecimentos sobre a fisiologia, ecologia e comportamento no processo migratório das espécies-alvo. A generalidade dos autores considera cinco tipos principais de PPP: passagens por bacias sucessivas, passagens ou deflectores do tipo Denil, eclusas, ascensores e passagens naturalizadas.
As
passagens por bacias sucessivas foram o primeiro tipo de dispositivo de transposição construído para fazer face a obstáculos naturais ou artificiais, sendo frequentemente utilizadas em França durante o século XIX. Actualmente é o modelo de PPP de utilização mais comum, sendo sobretudo utilizadas para vencer desníveis pouco pronunciados, como acontece na generalidade das mini-hídricas. O princípio geral do funcionamento consiste em dividir o desnível a vencer em várias quedas consecutivas de menor dimensão, através da construção de pequenas bacias que escoam água entre si de montante para jusante. São vulgarmente denominadas de escada de peixes, dada a sua configuração basear-se em bacias escalonadas em forma de degraus, formando um canal por onde os indivíduos se movimentam e transpõem as bacias nadando na coluna de água, ou em algumas situações por salto. A adequação das PPP por bacias sucessivas às espécies/famílias mais representativas nos troços onde as estruturas são colocada realiza-se através de modificações nos critérios de dimensionamento hidráulico.
Os deflectores ou passagens do tipo Denil começaram a ser utilizados na Bélgica no início do século passado. São caracterizados por apresentarem um canal rectilíneo de secção rectangular, possuindo um declive acentuado – entre 12% a 20% – e nas paredes e/ou fundo são implantados deflectores (em forma de U e dispostos num ângulo com aproximadamente 45º) com o intuito de reduzirem a velocidade média do escoamento. É um tipo de PPP adequado para a transposição de obstáculos de pequena dimensão e/ou em locais onde a disponibilidade de espaço seja um factor limitante. Apresentam usualmente caudais de atracção facilmente identificáveis pela ictiofauna, embora sejam bastante sensíveis a variações do nível da água a montante do obstáculo. É um tipo de PPP muito selectivo, dirigido maioritariamente para taxa que apresentem elevadas velocidades de natação e grande resistência, nomeadamente os salmonídeos; a sua utilização por espécies de menores dimensões e com baixa capacidade natatória é improvável.
A entrada em funcionamento das eclusas remonta à década de vinte do século XX, existindo diversos modelos, sendo o de utilização mais frequente denominado de Eclusa de Borland. As eclusa são constituída por duas bacias ou câmaras, uma a jusante do obstáculo a transpor, habitualmente de maiores dimensões, e outra a montante, sendo a comunicação entre elas efectuada por intermédio de uma conduta inclinada, ou alternativamente por um poço vertical. O princípio de funcionamento consiste em elevar o nível da água na câmara onde os peixes são induzidos a entrar, que é periodicamente fechada e após atingir um patamar superior – sensivelmente idêntico ao nível da água a montante –, os liberta com o intuito de poderem nadar livremente para a albufeira. O funcionamento destes dispositivos é baseado num ciclo de quatro períodos distintos: atracção, enchimento, passagem ou saída e esvaziamento. As eclusas são fundamentalmente utilizadas quando se pretende vencer elevados desníveis e onde o escoamento e espaço disponível sejam factores limitantes. Um dos principais inconvenientes reside no facto da capacidade de passagem ser baixa, em virtude do carácter descontínuo do seu funcionamento; estes sistemas apresentam também elevados custos de construção e manutenção, para além da sua concepção ser tecnicamente bastante exigente. Devido à baixa eficiência, as eclusas têm vindo a ser substituídas nos últimos anos, essencialmente por ascensores.
Um ascensor para peixes é um sistema mecânico de transposição piscícola desenvolvido nos EUA, remontando a primeira construção a 1924. O princípio de funcionamento consiste em capturar os peixes numa cuba a jusante do obstáculo, através da injecção de uma determinada quantidade de água para efectuar a sua atracção. Posteriormente, são içados por intermédio de um sistema mecânico e libertados a montante, num canal ou directamente na própria albufeira. O ascensor é um dispositivo que funciona por ciclos, com fases de captura, ascensão e libertação. As principais vantagens derivam da sua construção não ser muito dispendiosa, de ocuparem pouco espaço, adaptarem-se bem às obras fluviais e não serem dependentes da altura do obstáculo a transpor – sendo o mais indicado para desníveis superiores a 15 m. Como principais condicionalismos apresentam-se a atracção dos peixes para o interior da cuba, a baixa eficiência face a indivíduos de pequenas dimensões e os elevados custos de operacionalidade e manutenção.
As passagens naturalizadas proporcionam uma alternativa face às estruturas de transposição tradicionais, mimetizando um curso de água natural. No seu planeamento são considerados pressupostos ecológicos, maioritariamente a manutenção da conectividade fluvial para todas as espécies (incluindo mamíferos e macroinvertebrados) e estados de maturidade, para além da capacidade de proporcionarem um habitat colonizável às diferentes comunidades, sendo de realçar que este último aspecto raramente é tomado em consideração na concepção das PPP tradicionais. Um dos principais condicionalismos decorre da necessidade de serem aplicadas em declives pouco acentuados, preferencialmente 1-2%, podendo atingir no máximo os 5%. As principais vantagens derivam do baixo custo de edificação e da facilidade com que a toda a fauna dulçaquícola as utilizam, e em ambos os sentidos (é de salientar que se apresenta como o tipo de PPP que possibilita a realização de migrações descendentes sem perigos acrescidos para as diversas comunidades dulçaquícolas). Tais factos podem desempenhar um papel fundamental na reabilitação de segmentos fluviais regularizados. São considerados três tipos de passagens naturalizadas: canais naturalizados (“bypass”), rampas e declives (“bottom ramps and slopes”) e rampas para peixes (“fish ramps”). Os primeiros são os de mais ampla utilização, consistindo num canal que rodeia o obstáculo, assemelhando-se a um afluente ou canal lateral do rio principal.
Existem actualmente em Portugal seis eclusas de Borland (cinco nas barragens do Douro Internacional e o restante na de Belver, rio Tejo), um ascensor na barragem de Touvedo, uma passagem naturalizada no açude de Ponte de Lima e aproximadamente trinta passagens por bacias sucessivas. No entanto, a grande maioria destas infra-estruturas apresenta uma eficácia muito reduzida.
Face às implicações ecológicas que as obras hidráulicas induzem, torna-se necessário compatibilizar a dicotomia da sua construção com a conservação dos ecossistemas e da fauna dulçaquícola. Para tal, deve ser impedida a edificação de barreiras em determinados troços fluviais, e nos locais onde a sua construção seja deferida, deverá ser acompanhada de medidas de mitigação dos impactos, nomeadamente a construção de PPP eficientes e o maneio de habitats.
BIBLIOGRAFIA
Clay, C. H. (1995). Design of fishways and other fish facilities – 2nd Edition. Lewis Publishers, CRC Press, Inc.
FAO (2002). Fish passes – designs, dimensions and monitoring. FAO, Rome.
Ferreira, M. T.; Santos, J. M.; Pinheiro, P. J. e A. Albuquerque (2003). Ecohidráulica de passagens para peixes em pequenas obras fluviais transversais. Departamento de Engenharia Florestal, Instituto Superior de Agronomia. Lisboa.
Jungwirth M.; Schmutz, S. e S. Weiss (Edts.) (1998). Fish migration and fish bypasses. Vienna, Austria.
Larinier, M.; Travade, F. e J. P. Porcher (2002). Fishways: biological basins, design criteria and monitoring. Bull. Fr. Pêche Piscic. 364 suppl.
Marmulla, G. (Edt.) (2001). Dams, fish and fisheries – opportunities, challenges and conflict resolution. FAO Fisheries Technical Paper nº. 419. FAO, Rome.
Martins, S. L. (2000). Sistemas para a transposição de peixes. Dissertação apresentada à Escola Politécnica da Universidade de São Paulo para obtenção do Título de Mestre em Engenharia. São Paulo.
Pinheiro, P. J. (2004). Avaliação de novas tecnologias no estudo da funcionalidade de passagens para peixes por bacias sucessivas em Portugal. Dissertação de Mestrado em Gestão de Recursos Naturais. Instituto Superior de Agronomia, Universidade Técnica de Lisboa.