Artigo original, publicado aqui
Um inimigo invisível chegou de rompante às nossas vidas e obrigou-nos a mudar muitos hábitos. Mas, em caso de infecção, como é que o coronavírus SARS-Cov-2 nos afecta? E por que é que pode afectar as pessoas de forma diferente? Ou por que razão as crianças têm uma forma menos grave da infecção? Ainda são muitas as questões sobre este vírus.
Olhando ao pormenor para o SARS-Cov-2, sabe-se que é composto por uma partícula viral (virião), que é um milhão de vezes menos volumosa do que as células que infecta, refere-se numa newsletter do Instituto de Medicina Molecular (IMM), em Lisboa. Essa partícula é formada por uma membrana lipídica, uma cadeia de ácido ribonucleico (o ARN, que tem informação genética) e quatro proteínas estruturais. A mais proeminente é a da espícula, que tem a função de detectar uma “fechadura” (ou seja, de reconhecer o receptor nas células-alvos, neste caso a enzima ACE2) e de “abrir a porta” para as nossas células (isto é, promover a fusão das membranas da partícula viral e da célula).
“Como a ‘fechadura’ ACE2 está presente nas membranas das células epiteliais pulmonares – as células que revestem os alvéolos dos pulmões – o SARS-Cov-2 infecta com eficácia o sistema respiratório inferior, gerando pneumonias”, refere o IMM. Já a fusão das membranas faz com que o ARN viral penetre nas célula-alvo, o que acaba por resultar na multiplicação de novas partículas virais. “Uma célula pode produzir entre 100 e 1000 viriões, que irão infectar células adjacentes e iniciando assim o processo de infecção e doença aguda.”
Como afecta as pessoas ?
Como é que a covid-19, a doença causada pelo SARS-Cov-2, afecta as pessoas? Numa entrevista ao jornal britânico The Guardian, o pneumologista John Wilson frisou que as pessoas com covid-19 podem ser divididas em quatro grandes categorias. Na primeira estão as que têm o vírus, mas não apresentam sintomas. Noutra estão as que têm uma infecção no tracto respiratório superior, “o que significa que têm febre, tosse e talvez sintomas mais ligeiros como dor de cabeça ou conjuntivite”, referiu o também presidente do Colégio Real Australasiático de Médicos.
Num terceiro grupo estão as que mais provavelmente irão a um hospital. De acordo com John Wilson, apresentam sintomas semelhantes aos de uma gripe, aqueles que normalmente fazem com que uma pessoa fique em casa. Por fim, há ainda os doentes com uma forma grave da doença e têm pneumonia.
Por que há casos piores?
Ainda não se sabe bem porque há casos de covid-19 piores do que outros. “Penso que vai demorar muito tempo até percebermos o mecanismo de como algumas pessoas ficam mais doentes do que outras”, afirmou à revista The Scientist Angela Rasmussen, virologista da Universidade de Columbia, nos EUA.
Em dados de 45 mil doentes da China do final de Fevereiro, menos de 1% destas pessoas saudáveis morreram, mas a percentagem era mais alta em pessoas com doenças cardiovasculares (10,5%), diabetes (7,3%) e com doenças respiratórias crónicas (cerca de 6%). A Organização Mundial da Saúde (OMS) tem avisado que os idosos e pessoas com doenças já existentes têm mais probabilidade de terem uma forma grave da covid-19. Mas Tedros Ghebreyesus, director-geral da OMS, já avisou que os jovens “não são invencíveis”.
Ainda não se sabe bem porque afecta muito os idosos. Com base no estudo de outros vírus respiratórios, cientistas especulam que isso pode estar relacionado com a resposta imunitária. Ao entrar no tracto respiratório e ao multiplicar-se, o vírus vai causar danos, activar o sistema imunitário e recrutar células imunitárias para combater o agente patogénico. Os idosos e as pessoas com doenças pré-existentes “devem ter assim sistemas imunitários disfuncionais, o que pode pôr em causa a resposta ao agente patogénico”, refere-se no artigo da The Scientist.
Isto pode causar uma resposta descontrolada do sistema imunitário, desencadeando a produção em excesso das células imunitárias e das suas moléculas sinalizadoras, o que pode levar a uma tempestade de citocinas (moléculas que transmitem sinais durante a resposta imunitária) frequentemente ligadas a uma “enchente” de células imunitárias nos pulmões. “É assim que se acaba com doenças inflamatórias graves, como a pneumonia”, refere Angela Rasmussen.
E por que é que pode estar a causar mais mortes nos homens? Em Portugal, no último boletim da Direcção-Geral da Saúde, contabilizavam-se 3354 homens infectados e 4089 mulheres. Quanto às mortes, 96 eram homens e 64 mulheres. O mesmo se tem verificado noutros países.
Até agora as explicações são só especulações. Na China, um dos motivos apontados foi o tabagismo, visto que 50% dos homens fumam e do lado feminino são apenas 2%, como refere o The Guardian.
Pode haver uma combinação de factores biológicos. Afinal, as mulheres têm dois cromossomas X, que têm genes ligados à imunidade, enquanto os homens só têm um. Outras das razões é a de que os estrogénios (hormonas sexuais femininas) podem contribuir para o fortalecimento do sistema imunitário. Em experiências com ratinhos ao coronavírus SARS (parecido com o SARS-Cov-2), uma equipa liderada por Stanley Perlman, da Universidade do Iowa (EUA), verificou que os machos eram mais susceptíveis à infecção, e que desenvolviam a doença com exposições virais mais baixas do que os ratinhos fêmea. Já quando se removiam os ovários ou se bloqueavam os estrogénios nas fêmeas infectadas, estas tinham uma probabilidade maior de morrer do que as que não tinham sido intervencionadas.
Crianças versus idosos
Apesar de as crianças serem infectadas pelo vírus, os números mostram que uma menor percentagem delas tem uma forma grave da doença. Uma das explicações é a de que, à medida que o sistema imunitário envelhece, mais células vão ficando inactivas e perde-se assim a capacidade de responder com eficácia à infecção.
A idade do ambiente pulmonar pode ter influência, aponta Stanley Perlman. Para que não desenvolvam asma ou tenham uma resposta exagerada a substâncias no ambiente (como a poluição ou pólen), os pulmões mais velhos têm uma resposta imunitária em que a inflamação é menor. Desta forma, os idosos não vão ter uma resposta suficientemente rápida quando são infectados por vírus.
O receptor ACE2 também terá algo a dizer. Fernando Maltez, director do serviço de doenças infecciosas do Hospital Curry Cabral (em Lisboa), explicou em entrevista ao PÚBLICO que as pneumonias podem ser graves porque o vírus entra no organismo através de receptores (ACE2) no tecido pulmonar, mais propriamente nas vias aéreas inferiores: “Daí que o quadro clínico seja essencialmente de pneumonia e, como estes receptores têm tendência para aumentar com a idade, também reside aqui uma justificação para o facto de as pneumonias serem mais frequentes no idoso.”