A ler com muita atenção e, já agora, sem óculos ideológicos:
A potência mercantilista que domina a zona euro temcalcanhares de Aquiles, diz ao Expresso o historiadorAdam Tooze, especialista em história económica alemã e professor na Universidade de Yale, nos Estados Unidos.
Jorge Nascimento Rodrigues (www.expresso.pt)
8:56 Quarta feira, 19 de setembro de 2012
O segundo recente milagre económico alemão reúne um largo consenso entre economistas e atrai a curiosidade dos políticos em vários continentes. Até o presidente Obama teria manifestado interesse em o estudar. A Alemanha acumulou excedentes externos de mais de 1 bilião de euros na última década. O instituto de análise económica alemão IFO prevê que este ano a Alemanha ultrapasse a China no volume de excedente externo (175 mil milhões de euros) e se coloque como o país líder mundial neste indicador. Mas, paradoxalmente, "o modelo é simplesmente insustentável", diz-nos o historiador britânico Adam Tooze, professor na Universidade de Yale, nos EUA, e considerado um dos principais especialistas em história económica alemã do século XX.
O estatuto de país "excedentário" tem sido visto como um instrumento de poder geopolítico e não é encarado, de modo algum, como uma expressão de importantes desequilíbrios que desestabilizam atualmente a zona euro e a União Europeia e que são uma ameaça para a economia alemã no longo prazo. Essa é a tese de Tooze, autor de "The Wages of Destruction: The Making and Breaking of the Nazi Economy" e encarregado pelo ministério das Finanças alemão de escrever a história da dívida pública alemã durante o Terceiro Reich. "Falamos, recorrendo à moral, das virtudes da exportação e dos vícios dos défices. Mas, num sistema fortemente interligado, como é a zona euro, os dois lados - excedente e défice - estão diretamente conectados", recorda o professor de Yale.
Investimento interno está em mínimos
Com uma agravante: o modelo atual alemão não é uma repetição do milagre alemão do pós-2ª Guerra Mundial nem uma "cópia" dos percursos dos "tigres" do Pacífico. "De facto, o que temos visto desde o ano 2000 não é o regresso triunfante a um modelo historicamente provado. O que estamos a assistir é à sua desintegração e corrupção. Nos anos 1950, o investimento doméstico na economia alemã disparou. A Alemanha não se reconstruiu apenas - transformou a sua infraestrutura", prossegue o historiador para surpresa de muita gente.
Recentemente, a degradação do atual modelo económico alemão foi dupla, aponta Tooze: "Hoje em dia há um nível de exportação elevado. Mas os trabalhadores alemães não ganharam nada de substancial em termos de rendimento numa década. Os lucros estão em níveis recorde, mas, como as empresas alemãs se globalizaram, o investimento saiu da economia alemã. Globalizou-se. O investimento em capital na economia alemã está em níveis mínimos recorde. Desde 2000, o investimento líquido na economia alemã em termos de percentagem do PIB está no nível mais baixo de sempre, historicamente registado, excluindo, naturalmente, o período da Grande Depressão".
Esses são os calcanhares de Aquiles do modelo alemão, diz o historiador económico. Fraquezas estratégicas que são agravadas pela famosa "regra de ouro" da austeridade plasmada constitucionalmente. Esta regra retira flexibilidade na resposta das políticas económicas às circunstâncias. Mais grave, ainda, quando se pretende torna-la uma norma europeia: "Sem dúvida que em federações há boas razões para se adotarem regras orçamentais fortes. Permitem prevenir contra o despesismo e restringir a atuação de atores indesejáveis. Mas estas regras têm de ser desenhadas com inteligência. Devem dar flexibilidade estratégica e não excluir liminarmente a possibilidade de uma política económica democrática inteligente". Além do mais, sublinha o professor de Yale, "há que fazer uma distinção clara entre despesa corrente e investimento". "A despesa corrente deve ser controlada firmemente. Ajustada em função do ciclo económico, ela deve ser coberta pelas receitas correntes. Mas, em contraste, o investimento de longo prazo deve ser financiado por dívida de longo prazo, e sobretudo, como é o caso alemão agora, quando os juros estão muito baixos" [menos de 1% no prazo a cinco anos e pouco mais de 1,5% no prazo a dez anos, tomando em conta a referência do mercado secundário da dívida].
As lições da República de Weimar
A atual doutrina alemã, misturando mercantilismo com austeridade, tem, ainda, uma outra implicação, no plano geopolítico. "Os países excedentários não ganham nada a longo prazo com a sua posição de recusa de cooperação [com os deficitários]. O sistema que permitiu a certos países acumularem excedentes está a caminho do ponto de colapso", refere-nos Adam Tooze.
Uma atuação desse tipo foi trágica na última fase da chamada República de Weimar alemã nos anos da Grande Depressão, recorda o historiador. "Sem cooperação, sobretudo por parte dos países excedentários, um sistema rígido - como era, então o do padrão ouro na Alemanha e é hoje o da Zona Euro - implica uma pressão deflacionária enorme aos membros mais fracos, e isso ainda mais quando os mercados financeiros estão assustados. A principal lição que se tira desse período é que ou se avança na cooperação, ou, então, o melhor é quebrar o sistema de câmbios fixos".
Na altura, a Alemanha era um país deficitário, onde inclusive, na parte final da República de Weimar, o chanceler Heinrich Bruening optou, entre 1930 e 1932, por uma política de austeridade extrema, sendo então injuriado pela população como o "chanceler da fome". A catástrofe económica alemã a que se chegou em 1933 e a intransigência da França sobre as reparações relativas à 1ª Guerra Mundial, catapultaram o partido Nazi para o poder e mergulharam, depois, a Europa em nova guerra. Este é o período da história alemã do século XX em que se devem procurar lições para hoje, chama a atenção Adam Tooze. E não no muito referido período de hiperinflação do início da República de Weimar, entre 1921 e 1924, anterior à Grande Depressão.
A "República de Weimar" foi a designação dada pelos historiadores para a República federal e parlamentar, democrática, instituída em 1919 depois da queda do império alemão a seguir à derrota na 1ª Guerra Mundial e depois da revolução alemã de novembro de 1918. O nome advém da cidade onde uma assembleia nacional a 11 de agosto de 1919 aprovou uma nova constituição. O nome oficial era, no entanto, Deutsches Reich. Anteriormente, a Alemanha, depois da sua unificação, adotou em 1871 a forma de império com um kaiser à cabeça. A República de Weimar seria substituída pelo Terceiro Reich em 1933.