Texto de Luis Sousa Ferreira, o nosso conhecido conterrâneo "pai" do Festival Bons Sons.
Dizer mais do que ele escreveu é adulterar a verbe perene de saber e razão. Leiamos e choremos...
"Prémios SPA e o reflexo de um país de um pé descalço que não procura o seu par.
Os meus parabéns a todos os nomeados SPA. Fiquei honestamente muito feliz por algumas nomeações. Contudo, existem alguns pontos que gostaria de partilhar convosco, uma vez que faltaram ouvir-se vozes nesta gala que, certamente, estariam representadas caso houvesse tais categorias.
Ainda neste fim-de-semana, num encontro centrado no universo da dança “Encontros para o futuro - O Ensino da Dança: Desafios e Perspectivas”, disse que o problema da cultura e das artes não é a falta de dinheiro. O problema é muito maior e profundo. O problema da cultura em Portugal é a falta de valor que se lhe atribui. Não é apenas um problema de ministérios e orçamentos, que não são a causa mas "apenas" mais um sintoma do afastamento da nossa sociedade da "sua" cultura. Não esqueçamos que as instituições são, muitas vezes, o reflexo disso e a condição disso mesmo.
Não houve um nomeado que pudesse sequer defender e evidenciar que o grande problema de Portugal - que desertifica, queima e anula 80% do seu território - é a falta de um planeamento, que promova a sua equidade. Não o disseram porque não o vivem. Por mais empatia que possa surgir, a dinâmica cultural de Lisboa não percebe o impacto que isto também tem nas curtas carreiras dos seus projectos. Ou seja, todos os nomeados, apesar de fazerem parte de vários circuitos e disciplinas diferentes, eram todos da grande Lisboa. Não porque não haja mais nada fora da capital mas porque o capital é reconhecidamente preguiçoso. Mas como é que os autores da cultura "nacional", que não vivem o país real e que por ele não batalham, podem pedir a esse mesmo país que perceba a iminência das suas causas. O país responde-lhes também com essa falta de empatia. Então urge mediar, não um conflito, mas a falta de interesse que cada parte nutre pela outra. Um país de um pé descalço que não procura o seu par.
O poeta Antonin Artaud defendia que aquilo que é importante não é tanto a defesa da cultura, cuja existência nunca impediu um homem de passar fome; o importante é antes a extracção, daquilo a que se chama cultura, ideias cuja força motivadora seja idêntica à da fome.
Sou um opositor acérrimo dos centros e defensor das periferias, ou já ficaria feliz com um equilíbrio entre elas. Não concebo uma cultura que se vê de um ponto fixo e que a sua dinâmica apenas atinja o alcance dos seus braços. Não concebo uma cultura institucionalizada com uma visão paternalista e com uma acção moralista perante as suas gentes. Podemos falar do ensino, podemos falar dos financiamentos, podemos falar da televisão e do processo expositivo que, no lugar da cultura, implantou um bem mais apático: o gosto pelo entretenimento, onde somos espectadores de nós próprios, até na morte.
Zeca Afonso defendia que uma revolução cultural não era ele poder ir tocar a mais sítios; revolução cultural seria chegar a esses sítios e encontrar música de lá.
Agora como um agente de programação também gostava que um dia alguém subisse àquele palco e dissesse que o modelo de financiamento da SPA é também a razão do asfixiamento da programação nacional. Reduz os projectos de risco, a diversidade e apenas fomenta as "programações de estado" e dos artistas de sempre. "Simpaticamente" sempre chamei de porca gorda à SPA. Agora consigo perceber que o peso dessa gordura não lhe permite circular e perceber que há mais projectos artísticos fora de Lisboa. Sabendo que é uma entidade privada mas à qual o estado lhe atribui grandes poderes gostaria muito que esta não visse os poucos espaços e projectos de programação como os seus infractores mas como os poucos (para não dizer os únicos) parceiros que lutam pela equidade do território, pela criação e difusão da cultura contemporânea. Mais do que distribuir pelos seus associados o dinheiro que ficou sem cabimento, a SPA deveria criar linhas de apoio e projectos que apoiassem o Novo. Numa lógica de apoio intergeracional mas, neste caso, invertido. Os grandes associados deveriam prescindir do dinheiro que na prática não é seu, em nome do fomento da cultura nacional apoiando novos artistas, novos projectos de programação e novos territórios para a cultura.
Já Agostinho da Silva dizia que o grande defeito dos intelectuais portugueses era só lidarem com intelectuais. Que fossem para o povo. Que vissem o povo. Que reparassem como ele reflecte, como ele entende a vida e como ele gostaria que a vida fosse.
O inferno seremos sempre nós enquanto apenas virmos a responsabilidade dos outros."