13.10.16

As origens históricas da Laicidade, contributo de reflexão

Continuando o esforço para a transmissão e outros ensinamentos, que não os habitualmente dissimulados nos blogues, fazemos hoje um esforço, com uma análise sobre as origens históricas da Laicidade, numa visão maçónica.



LAICIDADE - ORIGENS HISTÓRICAS
Proposta de abordagem sintética

A dificuldade quando se fala em "origens históricas", é a de fugir à sucessão cronológica de factos históricos e de referências, que tornem a leitura impossível de realizar sem tempo ou consultas complementares. Não é esse o objetivo deste texto, mas sim o de fazer uma abordagem sintética, passível de ser percetível em tempo curto pelo leitor e nele levantar mais dúvidas do que certezas, valorizando o nosso papel de permanentes aprendizes.

O conceito de "Laicidade" tem diversas e diferentes abordagens, pelo que recordo aqui o de Étienne Pion, que em 1991, no seu prostíbulo "Lávenir laique", refere "pretender definir o conceito de Laicidade é pretender fixar o seu conteúdo de um modo que pode parecer intangível, para não dizer dogmático, o que seria atraiçoar o próprio espírito laico que exige uma abordagem mais aberta dos conceitos". ora, podemos ainda procurar na história os conceitos relacionados, pelo que encontramos na Grécia a palavra "Laikos", que define algo pertencente ao povo como classe social e já os romanos utilizaram com sentido semelhante a palavra "Laicus". Interessante base etimológica, ao ligar, desde logo o Laicismo, ao Povo, ou mais concretamente a algo que lhe é próprio, que lhe pertence.

Também nos primeiros séculos encontramos no cristianismo a distinção entre autoridade espiritual e poder temporal. A inviolabilidade recíproca das duas jurisdições decorrente do recurso aos textos sagrados é reconhecida como válida pelo Papa Gelásio I, através da imagem das duas espadas, que uma só mão não pode empunhar ao mesmo tempo... O objetivo então, desta imagem, era a de subtrair a aplicação da Justiça civil aos eclesiásticos, o que daria origem a uma guerra surda e permanente, entre o papa e especialmente os Reis de França.

As querelas entre o Papado e as autoridades civis e pensadores não eclesiásticos iriam continuar, em que personagens como Dante ou Marsílio de Pádua, se colocam ao lado da tolerância defendida pelos Reis e Imperadores...


Outras correntes intelectuais tomam posições semelhantes, como por exemplo a reforma protestante, na qual eruditos e humanistas do renascimento, como Maquiavel e Galileu, reforçados pelos racionalistas Espinosa e Locke, formam a base ideológica indispensável ao desenvolvimento do conceito do Estado Moderno.

John Locke publicou em 1689 a sua Carta da Tolerância, em que se interrogava sobre as relações do poder temporal (Estado) e o poder espiritual (Igreja), no qual analisa a autoridade política, distinguindo claramente os papeis da Igreja e do Estado. Para ele o Estado é uma sociedade de Homens, instituídas com o único fim do estabelecimento, da conservação e do progresso dos seus interesses civis. A autoridade estatal não se estende até à salvação das almas, mister do divino.

Ao Estado compete assim tratar da terra e a Religião tratar do céu...
É neste espírito que surge aquele que ficaria conhecida como a primeira lei anti-racista do mundo e que foi promulgada por Luis XIV, a qual condenava com multa de 500 libras todo o indivíduo que tratasse alguém do povo maldito (cagot) habitante do sudoeste de frança e navarra, com intenção injuriosa.

O conceito de laicidade reveste-se assim de universalidade, mas não se pode deixar de considerar tratar-se de uma invasão francesa,  a qual teve a sua génese na revolução francesa, muito especialmente por esta ser a época fundadora de referência para tudo o que diz respeito aos direitos do homem, iniciados com a declaração francesa de 1789, redigida pouco depois das declarações americanas semelhantes.
A importância da declaração francesa funda-se no facto da sociedade francesa da época, ser baseada no monopólio religioso imposto pelo catolicismo (em consequência da revogação do Édito de Nantes de 1685) e, ligada a isso, pela denúncia da filosofia do Iluminismo, do fanatismo religioso.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, é feita em presença e sob os auspícios do Ser supremo, a qual vem a ser desautorizada pelo Papa, em bora numerosos eclesiásticos tenham contribuído para a sua elaboração. Isto leva a que a revolução francesa entre em conflito com a religião católica.

Este conflito leva à tentativa de controlar a religião católica (1790), à sacralização da própria revolução (1793), com perseguições político-religiosas, até ser instaurada uma efêmera separação entre a Igreja e o Estado (1795).
A revolução francesa, pode-se assim dizer, tendo proclamado princípios laicos, não os conseguiu implantar!
Esta aplicação só viria a surgir com Napoleão Bonaparte, o qual põe fim à separação entre a Igreja e o Estado, confirmando assim certas mudanças operadas pela revolução e com isto, estabiliza um primeiro limiar de Laicização.

O Estado é laico nos seus fundamentos e o código civil dos franceses não contém qualquer prescrição religiosa. O estado civil é laicizado e um casamento civil constitui o pré-requisito obrigatório de toda a cerimónia religiosa de casamento.

Embora seja contemplada com uma concordata, assinada em 1801 com o Papa, a Igreja Católica teve de aceitar um regime de igualdade formal com outros cultos reconhecidos, como fossem os protestantismos luterano e reformado, judeísmo, etc...

Estavam assim lançadas as bases para que a laicidade, já no sec.XX, fosse inscrita pela primeira vez na Constituição da IV República Francesa (1946), sendo que com a instauração da V República, a 4 de outubro de 1958, viesse a constituição a definir no seu artigo 2º, que: "A França é uma República indivisível, laica, democrática e social. Ela garante a igualdade perante a lei de todos os cidadãos, sem distinção de origem, raça ou religião. Ela respeita todas as crenças".

Depois disto a grande dúvida que se deve formular hoje é se esse respeito se mantem nos dias de hoje...

Parece haver um certo desajustamento na Laicidade apregoada pela democracia contemporânea, bem visível nas notas verdes do seu mega-símbolo que são os Estados Unidos da América, o qual se resume na pequena frase: In God we trust (confiamos em Deus).

Os recentes ressurgimentos dos fundamentalismos, constitui um facto grave pois defende a restauração da ordem teocrática, ou seja, um sistema político e socialmente esvaziado e determinantemente dominado pelo religioso.
Se dúvidas houvesse, George W Bush, aquando da guerra do Iraque afirmou solenemente: "deus está do nosso lado". E depois ainda nos admiramos...


Bibliografia base
Com o contributo de sistematização de Fernando Pessoa;
Wikipédia;
"Glossário essencial da laicidade", adaptado do livro "L'avenir laique", de Étienne Pion;
Revista de "História das Ideias" - O estado e a Igreja, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra;
"Livret Blanc de la Laicité";
Análises e reflexões - a laicidade, de Jean Baubérot